"Aqui tem muita história pra contar..." Por Hugo Studart
A Casa Studart Cachaçaria foi criada com o objetivo de resgatar uma tradição dos meus ancestrais em destilados, que teve início em meados do Século XVI, quando William Thomas Studart começou a produzir e a comercializar uísque na pequena cidade de Dunbar, sudeste da Escócia, até chegar a meu bisavô, Carlos Guilherme Gordon Studart, de Fortaleza. Carlos Guilherme viveu até os 103 anos, lúcido e ativo, tomando diariamente duas doses de uísque escocês ou uma generosa talagada da cachaça artesanal que produzia em seu alambique em Aracati, Ceará. Seus filhos e netos preferiam o vinho do Porto. Coube a mim, Carlos Hugo, assim batizado em homenagem a meu bisavô, prosseguir com uma tradição familiar de 400 anos, interrompida em 1965 com o falecimento de Carlos Guilherme.
Origem Medieval
A família Studart tem origem em Northumberland, a região da Grã-Bretanha que separa a Inglaterra da Escócia, cenário das primeiras invasões vikings e, também, das Crônicas Saxônicas do rei Alfredo, O Grande. O fundador da família, Vlfus Studhlerde, teria chegado a Northumberland em 1066 no Exército de Guilherme, O Conquistador, Duque da Normandia, França, que se tornou o primeiro rei normando da Inglaterra. O sobrenome é derivado de Stud, cavalo em inglês arcaico, com hlerde, rebanho. Acredita-se que Vlfus Studhlerde fosse criador de cavalos. Depois o sobrenome derivou para Studart, ou seja, arte de montar ou de criar cavalos, com variadas corruptelas. Geoffrey Stodhurd foi listado no Curia Regis Rolls para Northumberland em 1219. Mais tarde, em 1286, John the Stodhirde foi encontrado no Assize Rolls para Cheshire; já em 1332, Richard le Stodehard foi encontrado nos registros de Yorkshire.
Em York, apareceram registrados os nomes de Thomas Stoderd em 1481 e, em 1482, o de John Studart. Com o passar dos séculos, os descendentes do normando Vlfus, usando sobrenomes com variadas grafias, especialmente Studart e Stoodart, foram se estabelecendo nas cidades de York, Alnwick e Bamburg, em Northumberland, como também no sul da Escócia, sobretudo em Edimburg e imediações. A grafia Stoodart começou a aparecer nos registros das paróquias escocesas no final do Século XVI, provavelmente por conta da implacável perseguição da rainha Elizabeth I, da Inglaterra, aos parentes de sua prima Mary Stuart, rainha da Escócia, decapitada em 1589. Elizabeth, filha de Henrique VIII com Ana Bolena, tinha sua legitimidade contestada pelos católicos da Grã-Bretanha. Henrique havia se divorciado de uma rainha católica e fundado a Igreja Anglicana para se casar com Bolena. Quando a jovem filha do casal subiu ao trono, uma das primeiras providências foi mandar decapitar sua prima Mary, legítima herdeira da dinastia. Foi quando muitos Studart da Escócia começaram a mudar a grafia do nome para Stoodart, decerto para não serem confundidos com os membros da família Stuart.
A Água da Vida
Em fins do Século XV, os escoceses usaram malte de cevada para destilar uma bebida usada pelos médicos árabes medievais, batizada pelos monges beneditinos de aqua vitae, água da vida. Passaram a chamá-la de uisge beatha, água da vida em gaélico. O néctar seria amplamente difundido na Escócia a partir de 1494, quando o rei James IV ordenou a fabricação de 1.500 garrafas de uisge. Em meados do Século XVI, membros escoceses da família Studart começaram a produzir e a comercializar o novo destilado. Há um registro de 1568, da Cúria de Edimburg, sobre William Thomas Studart, comerciante de uísque em Dunbar, cidade no litoral sul da Escócia. Alguns Studart do sul da Escócia produziram ou comercializaram uisge por dois séculos até que, em 1746, ocorreu a antológica Batalha de Culloden, no qual o Exército da Inglaterra, comandado pelo Duque de Cumberland, filho do rei George II, venceu as tropas do príncipe Charles Edward Stuart, conhecido por Bonnie Prince Charlie, que firmou aliança com rebeldes escoceses, os “jacobitas”, para restaurar o trono católico na Grã-Bretanha. Nos anos subsequentes, a Inglaterra arrasou com a Escócia.
Executou todos os simpatizantes jacobitas, a maioria moradores das terras altas, os highlanders, dissolveu os clãs, proibiu a língua gaélica, as tradições e a cultura escocesas sob pena de morte. A maior parte dos sobreviventes foi enviada às colônias britânicas a fim de cumprir 14 anos de pena como escravos. Depois eram libertados, mas estavam proibidos de retornar à Escócia. Teve início então uma grande diáspora. Hoje há muitos membros da família Studart nos Estados Unidos e no Brasil, alguns poucos na Inglaterra e nenhum na Escócia – onde só existe a grafia Stoodart.
Escoceses em Portugal
Após a Batalha de Culloden, o escocês Edward Gordon Studart conseguiu fugir dos ingleses e chegar à cidade do Porto, Portugal. Estabeleceu-se como comerciante de vinho do Porto. Foi lá que, em 1754, nasceu seu filho Amos, que herdou os negócios do pai. Com o tempo, Amos Studart foi criando fortes laços com a Inglaterra, sobretudo com os industriais da emergente Manchester. Casou-se com Mary Bradley; dentre os filhos do casal, William Chambly Studart, nascido em 1794, que daria continuidade ao novo negócio da família, produção e exportação de vinho, e que mais tarde se tornaria cônsul britânico na cidade do Porto. Em 1827, William Chambly conheceria e se casaria com a inglesa Mary Martha Smith, nascida em Worchester, viúva de um nobre português. O filho do novo casal, John William Smith Studart, nasceu em 1828, em Lisboa. Seu pai morreria em 1835, quando o John tinha apenas seis anos. Em 1840, aos 11 anos, John William desembarcaria em Fortaleza, Ceará, seguindo os passos do meio-irmão mais velho, o Barão José Smith de Vasconcelos. John retornaria algumas vezes a Portugal e à Inglaterra, mas foi o Ceará que escolheu para trabalhar e formar família.
O braço da família Studart que emergiu em Portugal e se estabeleceu no Ceará acabou por cortar os laços com a Escócia. Mas não com os destilados. John William casou-se com Leonísia Castro Barbosa, filha de um influente líder político do Estado com terras em Sobral e usina de açúcar em Aracati, onde era produzida uma aguardente de cana. Ele teve 13 filhos, sendo que 10 deles receberam os nomes Guilherme ou Guilhermina. O primogênito, Guilherme Chambly Studart, o Barão de Studart, médico, historiador e líder abolicionista, foi um dos intelectuais e líderes políticos mais relevantes da região na transição do Império para a República Velha. Sua maior relevância histórica foi ter sido o principal líder da campanha que acabou com a escravidão no Ceará quatro anos antes da Lei Áurea.
As Extravagâncias de Carlos
Mas foi o sexto filho de John William, Carlos Guilherme Gordon Studart, meu bisavô, quem herdou o gosto pelos destilados e, sobretudo, pelos prazeres da vida. Era farmacêutico de formação, mas tinha forte vocação para os negócios. Também cultivava algumas paixões. Uma delas, o turfe. Era criador de cavalos de corrida ingleses. Outra paixão era a política. Carlos Guilherme era militante republicano. Quando o Império ruiu, fundou o Partido Republicano Democrático no Ceará e levou quase todos os homens da família para a militância. Em 1891, os ventos mudaram. O presidente Floriano Peixoto deu um golpe de Estado, fechou o Congresso e suspendeu todos os direitos constitucionais. Floriano tinha por costume mandar enforcar ou degolar seus adversários. No Ceará, os aliados do ditador depuseram o presidente da Província e tomaram o poder por mais de uma década. Liberal e humanista, Carlos Guilherme estava do outro lado. Teve então que fugir de Fortaleza em um de seus cavalos de corrida para não ser degolado. Escondeu-se na fazenda da família materna em Acarati.
Carlos permaneceu por longos sete anos exilado em Aracati. Foi quando começou a aperfeiçoar o processo de produção de cachaça artesanal, sua nova paixão. Afinal, era químico, farmacêutico. Em 1898 ele fez acordo para retornar à Fortaleza. Em troca, toda a família seria obrigada a abandonar a política. Então passou a se dedicar aos negócios. Foi um dos incorporadores do Banco do Ceará, mas logo se mudaria para Manaus, onde se tornou um grande exportador de borracha. Virou mantenedor da Santa Casa. Fundou o jornal O Amazonas, do qual foi redator-chefe. Eleito o vereador mais votado da capital, presidiu a Câmara dos Vereadores e acabaria superintendente (prefeito) de Manaus. Em 1912, teve que fugir de Manaus por conta por causa da política. Então fundou uma indústria de cosméticos no Rio de Janeiro, fabricante do Leite de Colônia, o desodorante predileto de nossas avós. A fórmula era sua, naturalmente. Por volta dos 60 anos, Carlos Guilherme sofreu de uma síncope cardíaca enquanto em viagem pela Europa. Consultou um cardiologista em Paris.
O médico teria ficado preocupado com a gravidade do diagnóstico e incisivo na prescrição: “O Sr. está muito velho, tem que parar imediatamente com as extravagâncias” – teria dito. “Pas de tabac, pas d'alcool, pas de femmes – nada de tabaco, nada de álcool, nada de mulheres”. Reza a lenda em família que Carlos Guilherme teria ficado arrasado por uns três ou quatro dias. Então tomou a grande decisão de sua vida: morrer em grande estilo. Passou no Quartier Latin e contratou duas coristas para voltar com ele na cabine do navio, duas, bebendo champagne e fumando charutos. E assim prosseguiu até o final da vida. Todos os dias, Carlos degustava vinho do Porto após o almoço e, antes do jantar, fumava um charuto e tomava um destilado. Ou um cálice do conhaque português Macieira; ou duas doses do puro malte Compass; ou, ainda, uma boa talagada da cachaça artesanal, com sua fórmula, que mandava vir do alambique da família em Aracati. Graças à paixão pelos bons destilados, Carlos teve uma filha aos 91 anos.
Foi uma grande alegria. Aos 96, sua amante da ocasião ficou grávida; ele quis reconhecer a criança, mas a mãe informou que o pai era de outro. Ficou furioso. Faleceu com 103 anos, alegre e lúcido, distribuindo balas coloridas para as crianças, flertando com mulheres, fumando charutos e, sobretudo, saboreando bons destilados. Seus filhos e netos, a começar por meu avô Carlos Studart Filho, nenhum deles tomava uísque ou cachaça com regularidade. A preferência geral na família sempre foi o Porto. Coube a mim, Carlos Hugo, resgatar a tradição pelos destilados a partir de um forte desejo imanente pela alquimia, a ideia de transformar a cachaça bruta em ouro com sabor e odor. E que os espíritos do normando Vlfus, do escocês William Thomas e do extravagante cearense Carlos Guilherme estejam sempre a me inspirar.